14 maio 2007

Rei? Mas quem é rei não perde a majestade ...

O que é "contexto desfavorável"?
Paulo Coelho


Tenho grande admiração por Roberto Carlos. Continuarei comprando seus discos, mas estou chocado com sua atitude infantil

Tenho uma grande admiração por Roberto Carlos -recentemente, um dos mais importantes programas da BBC Radio me perguntou a lista de cinco discos que eu levaria para uma ilha deserta, e incluí um dos seus. E, apesar dos problemas normais decorrentes de uma relação profissional, tenho um grande respeito pela editora Planeta, que publica minhas obras no Brasil e em vários países de língua espanhola.

Dito isso, é com grande tristeza que leio nos jornais que, na 20ª Vara Criminal da Barra Funda, em São Paulo, os advogados do cantor Roberto Carlos e da editora Planeta fizeram um acordo que prevê a interrupção definitiva da produção e comercialização da biografia não-autorizada "Roberto Carlos em Detalhes", do jornalista e historiador Paulo Cesar Araújo. O editor diz um disparate para salvar a honra, o cantor não diz nada e o autor fica proibido de dar declarações a respeito. E estamos conversados.

Estamos conversados? Não, não estamos, e tenho autoridade para dizer isso. Tenho autoridade porque, desde que publiquei meu primeiro livro, tenho sido sistematicamente atacado.

Creio que qualquer pessoa em seu juízo normal sabe que, a partir do momento em que sua carreira se torna pública, está exposta a ter sua vida esquadrinhada, suas fotos publicadas, seu trabalho louvado ou enxovalhado pelos críticos. Isso faz parte do jogo e vale para escritores, políticos, músicos, esportistas. Nem sempre essas críticas são justas e, muitas vezes, descambam para ataques pessoais.

Recentemente, um jornalista da mais importante revista brasileira disse que "Paulo Coelho não é apenas mais um mau escritor: seu obscurantismo é nocivo. Não se deve perdoá-lo pelo sucesso". Não sei o que estava propondo com essa frase, e não me interessa. Poderia alegar que minha honra está sendo atacada, que me acusa de ser um perigo para meu país, que deseja que eu seja preso. Mas vejo essas diatribes com outra ótica: elas fazem parte do jogo. A única coisa que não faz parte do jogo é a calúnia, e, pelo que me consta, isso não foi tema da ação judicial que levou à proibição de "Roberto Carlos em Detalhes".

Até hoje, desde que publiquei "O Diário de um Mago", há 20 anos, vi milhares de críticas negativas, mas apenas duas ou três calúnias a meu respeito, graças a Deus. Não me dei ao trabalho de contra-atacar porque não achei que valia a pena, embora me reserve esse direito se algo muito sério acontecer. Recentemente, em um jornal espanhol de primeiríssima linha, simplesmente inventaram uma resposta a uma pergunta a que havia me recusado responder. Claro, enviei uma carta ao diretor, e o jornalista teve que arcar com as conseqüências.

Estou pronto para defender minha honra, mas não vou perder um minuto do meu dia telefonando para um advogado e procurando saber o que faço para defender minha vida privada, já que ela não mais me pertence.

Diz o velho ditado: "Quem está no fogo é para se queimar". Eu acrescento: Quem está no fogo é para ajudar a fogueira a brilhar mais ainda. Não adianta o meu editor declarar que fez o acordo "porque o contexto era desfavorável". Ele precisa vir a público explicar qual é esse contexto -ou seja, se estamos falando de calúnia. Neste caso, tem meu apoio integral, pois calúnia é sinônimo de infâmia. Mas, caso contrário, está colaborando para que comece a se criar um sério precedente -a volta da censura.

Roberto Carlos tem muito mais anos na mídia do que eu; já devia ter se acostumado. Continuarei comprando seus discos, mas estou extremamente chocado com sua atitude infantil, como se grande parte das coisas que li na imprensa justificando a razão da "invasão de privacidade" já não fosse mais do que conhecida por todos os seus fãs.

Também continuarei sendo editado pela Planeta, pois temos contratos assinados. Mas insisto: gostaria que minha editora, dinâmica, corajosa, se instalando agora no Brasil, explicasse a todos nós, brasileiros, o que significa esse tal de "contexto desfavorável".

Desfavorável é fazer acordo a portas fechadas, colocando em risco uma liberdade reconquistada com muito sacrifício depois de ter sido seqüestrada por anos a fio pela ditadura militar.

E não entendo por que você, Paulo Cesar Araújo, "se comprometeu a não fazer, em entrevistas, comentários sobre o conteúdo do livro no que diz respeito à vida pessoal do cantor" (Ilustrada, 28/4). Não é apenas o seu livro, cujo destino foi negociado entre quatro paredes, que está em jogo. É o destino de todos os escritores brasileiros neste momento.

Não sei se vou ter as explicações que pedi. Mas não podia ficar calado, porque isso que aconteceu na 20ª Vara Criminal da Barra Funda me diz respeito, já que desrespeita minha profissão de escritor.


PAULO COELHO , 59, escritor e compositor, é membro da Academia Brasileira de Letras. É autor de, entre outros livros, "O Alquimista" e "A Bruxa de Portobello".


Publicado no jornal Folha de São Paulo em 2 de maio de 2007.




Chamem Castro Alves, urgente!
Geneton Moraes Neto


Avocação do Brasil para se perpetuar como republiqueta de décima quinta categoria se manifesta de novo. O trabalho de anos e anos do jornalista Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos, foi para o lixo.

A cena — patética, deprimente, horrorosa, indefensável, injustificável — saiu no jornal: caminhões recolhendo caixas e caixas de exemplares do livro “Roberto Carlos em detalhes” no depósito da editora. Vergonha. Vergonha. Vergonha. A visão de livros incinerados ou triturados é digna da era nazista. Um colunista da “Veja”, André Petry, acertou em cheio: Roberto Carlos manchou para sempre a biografia ao dar esta demonstração de absurda intolerância.

O livro vai ser fisicamente destruído, uma violência inominável. A destruição significa que todas as páginas foram censuradas. Todas as frases. Todas as vírgulas. Todos os parágrafos. Tudo. O veto integral ao livro configura uma violência e um ataque à liberdade de expressão. Abre um precedente perigosíssimo. Dá vontade de repetir a pergunta inútil: “Onde é que estamos?”

Uma voz, vinda das profundezas do inferno, sussurrará: “Calma! Estamos no país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza!” Aqui, nesta republiqueta de décima sexta categoria, um juiz ajuda a decretar a pena de morte para um livro honesto, jornalisticamente correto e bem apurado. Depois, posa para foto com o co-responsável pela violência — o autor da queixa contra o livro!” (quem não leu no jornal perdeu a chance de se indignar: terminada a audiência, o juiz pediu para tirar uma foto ao lado de Roberto Carlos. De quebra, deu ao cantor um CD que ele, juiz, músico amador, gravou nas horas vagas, um arremedo de bossa nova...).

É claro que, na prática, o recolhimento dos exemplares não significa nada. O juiz, o cantor & seus sócios se esqueceram de que, para o bem ou para o mal, a vida intelectual hoje não se apóia em bases físicas, mas virtuais. Quem quiser pode queimar papel à vontade. Porque, hoje, textos existem virtualmente na internet. Não podem ser punidos com a destruição física. O texto integral do livro já circula, livre, nos computadores. Quem quiser pode lê-lo a qualquer momento. É só clicar.

A internet fez este enorme bem à Humanidade: as garras da censura e da intolerância podem ser peludas, intransigentes, violentas, nazistóides e intolerantes, mas são incapazes de decretar a morte de um texto. Hoje, é tecnicamente impossível banir um livro (thank you, Bill Gates! Deus te pague! Aliás, já pagou, em bilhões de dólares). A famosa primeira emenda à Constituição americana proíbe que se crie qualquer instrumento contra a liberdade de expressão e de imprensa. A boa notícia: a internet vem funcionando como uma espécie de Primeira Emenda planetária. Nem foi preciso que se escrevesse esta emenda: ela já entrou em vigor.

O artigo de Paulo Coelho na “Folha de S.Paulo” é brilhante. O grande best-seller teve coragem. Partiu para a briga, o que é uma virtude louvabilíssima, nesta republiqueta de décima sétima categoria em que todo mundo dá tapinha nas costas de todo mundo. Pausa para vomitar. O choque de idéias, obrigatório em ambientes intelectualmente saudáveis, aqui no Brasil é logo substituído pela conciliação. Não por acaso, o Brasil é o que é: um paiseco de décima oitava categoria em que o jornalismo é chato, a literatura é chata, a universidade é chata.

Com raras exceções, a violência de inspiração nazista cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos mereceu apenas reações burocráticas da imprensa. Não conheço Paulo César Araújo pessoalmente. Mas ele merece toda a solidariedade. Cadê os editoriais irados na imprensa? Cadê as páginas de reclamação, briga, confronto, questionamento? O assunto não pode morrer assim. Onde estão os editores todos, que não fecham o trânsito na Avenida Paulista e na Avenida Rio Branco para protestar?

O caso Roberto Carlos não é o único. Há outras vítimas de violência: um perfil biográfico do grande poeta Manuel Bandeira, escrito pelo jornalista Paulo Polzonoff, continua mofando no depósito de uma editora, numa cena digna de um filme sobre a Alemanha dos anos 30 — ou do Brasil dos anos setenta! Motivo: herdeiros do poeta investiram previamente contra o livro.

O caso é gravíssimo: um livro, impresso, sequer chegou às prateleiras das livrarias! A violência é até pior do que a cometida contra o biógrafo de Roberto Carlos. O livro sobre o cantor já é de domínio público. Independentemente de ter sido recolhido, destruído, queimado ou triturado, quem quiser poderá lê-lo na tela do computador. Já o livro sobre Manuel Bandeira foi alvejado no nascedouro. Nem chegou a ser distribuído! Manuel Bandeira é um patrimônio do Brasil. Ter acesso à história do poeta é um direito dos leitores. Mas não! Aqui, na republiqueta de décima nona categoria, o livro mofa nos depósitos.

Que fique registrado este protesto, inútil, contra duas violências que acabam de ferir e manchar o ambiente editorial e jornalístico deste paiseco de vigésima primeira categoria: uma cometida contra Paulo César Araújo, biógrafo de Roberto Carlos; a outra, contra Paulo Polzonoff, autor de um perfil biográfico de Manuel Bandeira. O pior é que os que tiveram a chance de ler a biografia de Roberto Carlos garantem que o tom do livro é cem por cento elogioso! O perfil de Manuel Bandeira é apenas uma reportagem alentada. Mas os dois estão condenados! Que paiseco de vigésima segunda categoria é este, em que queixas contra livros honestos e corretos encontram terreno para progredir? Que Congresso é este, que não revê imediatamente as brechas que a Constituição deixou abertas para os abutres da liberdade de expressão? Duas décadas depois da redemocratização, a Censura ameaça emergir de novo das trevas, sob novos disfarces. Que se diga: não, não e não! O Brasil não quer ver de novo este filme de horror: antes, generais de óculos escuros, sargentos e coronéis se davam ao direito de dizer o que deveríamos ler ou não. Hoje, intolerância, intransigência e ganância, escudadas em brechas da lei, ameaçam transformar o Brasil no país da biografia a favor. Quem desafinar o coro vai para a fogueira! Ou para a máquina trituradora! Em aldeias civilizadas, quem se sente ofendido recorre à Justiça. Briga boa é a que vai até o Supremo. O que não se pode, sob hipótese alguma, é censurar cem por cento do conteúdo de um livro, mandar uma edição inteira para o lixo ou condenar uma biografia a mofar no depósito.

Gestos como estes ameaçam inviabilizar a publicação de biografias no Brasil. Se a esquisitice e a intolerância de uma personalidade pública são suficientes para condenar um livro a arder no fogo da censura, as editoras vão fugir da raia antes de embarcar em projetos biográficos. É este, na verdade, o grande prejuízo: quantos e quantos projetos não serão abortados antes de escrito o primeiro parágrafo? Quantos e quantos livros deixarão de ser escritos?

Quem perde? Como sempre, o Triste Gigante; esta nossa velha republiqueta de vigésima terceira categoria — que convive com a insânia, a violência, a iniqüidade, a censura e o horror como se fosse possível tolerar a insânia, a violência, a iniqüidade, a censura e o horror. Não é.

Então, num gesto inútil de desobediência civil, só para mostrar que a capacidade de indignação não morreu, todos deveriam, tendo ou não interesse, acessar na internet o livro que será triturado em breve.

A nós, espectadores deste desfile de horrores, resta o quê? Chamar Castro Alves, urgente: “Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura/ Se é verdade/ Tanto horror perante os céus!”

Geneton Moraes Neto é jornalista.


Publicado no jornal O Globo em 13 de maio de 2007.